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“E se eu pudesse levar o mar para os lugares onde fosse?”

Texto processo-poesia para a publicação do Projeto Mulheres Múltiplas - Formação e Residência artística online.

2021

Tendo o oceano Atlântico como fonte de pesquisa sobre os movimentos da diáspora africana, minha intenção sempre foi levar esse tema para a minha produção artística a fim de entender melhor a minha própria relação com as suas águas.

E se eu pudesse levar o mar para os lugares onde fosse?

Minha proposta inicial para realização durante a residência tinha como ponto de partida utilizar a potência das águas do mar Atlântico juntamente com a experiência visual da pintura como objeto de estudo das possibilidades de inundação que esse corpo de água leva para os mais diversos espaços do nosso cotidiano.


Apesar de ter enviado um projeto quase finalizado em termos de execução das minhas ideias, durante a primeira semana de encontros da residência, essa proposta ganhou outros direcionamentos e se expandiu. Através de conversas e questionamentos construí um caminho que me levou a destrinchar melhor o meu tema. Partindo de uma perspectiva de introspecção, senti a necessidade de visitar esse lugar-mar, ficar diante dele e me permitir reconhecer os sinais de conexão que tanto procurava.

Quero ser engolida, devorada pelo céu-mar.

Quando as nuvens chegam ao limite do mar, um parece fazer parte do outro.

- E o mar virou céu!
Aqui, tudo é céu
Aqui, tudo é mar

Não tenho a memória de quase ter morrido afogada, mas gostaria de ter. 

Talvez essa memória me libertasse, para agora, adulta, estar e ser água-mar.

Já passei por coisas demais.
A terra chama meu corpo e nome.

A partir daí comecei a pensar em formas de esgotar as possibilidades dos elementos que envolviam a minha proposta. Prestando atenção nas cores, na materialidade e nas texturas que eu gostaria de ver e sentir, fui à praia e realizei fotografias e vídeos com meu celular, depois imprimi tais fotos e realizei colagens, fiz experimentos com tintas de cor azul, branca e preta, e escrevi todos os questionamentos e impressões que me foram surgindo durante todo esse processo. Em uma das mentorias com Charlene Bicalho, mostrei o que havia produzindo de experimentações, e diante da minha leve frustração de sentir que aquilo não estava me levando a lugar algum, Charlene me abriu os olhos e me ajudou a entender esse processo de experimentação como o próprio corpo do meu trabalho.

Fazer do processo o produto.
Processo é trabalho.
Trabalho é processo.

Tendo como uma de minhas grandes referências a pintora Georgia O’Keeffe, me inspirei em uma de suas falas sobre o seu ato de pintar. Ela diz:
“Eu sei que não consigo pintar uma flor. Eu não consigo pintar o sol no deserto numa manhã brilhante de verão, mas, talvez, em termos de pintar a cor, eu possa transmitir a minha experiência de flor ou a experiência que o significado de flor faz para mim naquela altura específica.”
Decidi então construir um livro-experiência de mar, utilizando todo o material produzido até aquele momento. Meu objetivo era condensar no livro tudo o que sentia em relação ao mar, ao azul do céu, ao azul do reflexo na água, aos meus pés que afundavam na areia cada vez mais com o vai e vem das ondas, ao olhar de liberdade quando se dirigia para o alto, às linhas das nuvens, ora definidas, ora embasadas ao contrastar com a imensidão do azul céu, tudo.

Me coloco como onda.
Sou onda
que
sobe,
sobe,
sobe
E desfaz
Sobre si mesma

Continuei experimentando, anotando, pirando. Minha experiência com os elementos começou a se misturar com memórias de família e outras memórias resgatadas de lugares-outros que nunca visitei.

É isso que dá mergulhar em um oceano de intermináveis histórias.

O livro já não parecia mais suficiente para todo o desejo de vontades que me percorria. Em outra mentoria, dessa vez com Andreia Falqueto, quase sem fôlego derramei todas as ideias de transformar meus trabalhos em séries, e novamente, fui orientada a me concentrar no que eu já conhecia e no que era familiar para mim.

E se eu fizer a travessia?

Embalada pelo som de músicas que conversavam comigo sobre águas e pela voz de Elisa Lucinda declamando Conceição Evaristo “Águas de Kalunga”, dei nome e forma às séries “duplo” e “retorno”. A série “duplo” reúne nove colagens que fiz com as fotografias que tirei na praia no início da residência e outras que já tinha tirado a muito tempo. Através da composição das fotografias, da impressão em folha sulfite e em papel vegetal, quis trazer a minha visão desse duplo céu-mar que me encanta todos os dias. Em “retorno”, vou recolher escritos perdidos entre as folhas do caderno de anotações e criar uma narrativa marítima e contínua do meu movimento de imersão e travessia por essas águas-memórias. Utilizo a pintura e o texto em sete papéis separados para que possam dialogar entre si e em suas individualidades.

Meu nome
É marítima

Acredito na significância e na imensidão desses trabalhos que realizei dentro da residência. São trabalhos que demonstram todo o percurso feito e a reverberação de encontros que me encheram de inspiração, força e carinho. Em cada palavra que escrevi, em cada decisão que tomei, para além do meu desejo e da minha intuição, estava também cada troca realizada com todas as mulheres que fizeram parte desse projeto. Minha grande admiração e agradecimento às realizadoras queridas Andreia Falqueto, Charlene Bicalho, Kika Carvalho, Renata Fontanillas, e às residentes amigas Águi Berenice, Aline Fátima, May Agontinme e Jé Hãmãgãy.


Não há fim.

Jaíne Muniz

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